“Hoje foi dia 8 de maio de 2010, lembrar.”

Para variar, acordei cedo hoje, não que fosse minha intenção, mas o nosso querido sol fez questão de mais uma vez me presentear com seus beijos logo cedo , detesto, mas estou acostumado. Fiz questão de tentar dormir novamente, mas aquela fresta de luz infernal vindo diretamente nos meus olhos não permitiu.

Preguiçosamente, sentei na cama e enquanto coçava os olhos, repassei mentalmente tudo que havia escrito na noite anterior. Um romance onde o protagonista, de repente, acorda em um mundo totalmente diferente do seu e tem que aprender como viver neste novo mundo. E ainda só estou na introdução, mas já é alguma coisa. Terminei de coçar os olhos e olhei direto para o calendário que fica de frente para onde eu durmo. 08 de maio de 2010. “Alguém mexeu no meu calendário”. Pus-me de pé e cambaleando de sono fui até o calendário e ajustei novamente. 11 de maio de 2008. Fui até o armário para trocar de roupa.

“comprar roupas novas”

“Que merda é essa?” Pensei quando vi um post-it colado na porta do armário. “Isso só pode ser coisa da Margaret. Já pedi mais de mil vezes para ela não entrar no meu quarto e, além de entrar, sai colando coisa por aí”. Ao abrir a porta percebi que ela não estava errada, de um dia para o outro meus suéteres pareciam  estar pelo menos a alguns anos juntando poeira no armário. Tirei meu pijama e vesti o que até ontem era o melhor suéter que eu tinha. Com as calças não foi diferente, todas empoeiradas, mas vesti a minha melhor jeans. Fico pensando em como ela entrou em meu quarto, tenho sono muito leve, provavelmente teria acordado. Tirei o Post-it da porta e o amassei até virar uma pequena bola e ao agachar da lixeira, que ficava entre o armário e a porta para fora do quarto, percebi que este não foi o único porque havia muitos ali dentro.

“comprar cobertas novas
“comprar travesseiro novo”
“varrer o chão do quarto”
“deixar a janela aberta para pegar sol no quarto”
“tirar o pó das coisas”

Desamassei alguns para ver o que eram e percebi que todos eram tarefas para serem feitas. Lembretes. “Agora me vem com essa, acha que não sei fazer nada e tem que ficar me lembrando das coisa? Ta de sacanagem.”, tive o impulso de dar um grito para chamar-lá mas era muito cedo para isso e não suporto barulho alto de manhã. Ela não teria tempo de escrever tudo isso, foi dormir antes que eu e ninguém ,além de mim, entrou aqui ontem a noite, tenho certeza. Com essas incomodações, começo o dia com o pé esquerdo. Amassei todos novamente e joguei no lixo.

Abri a porta e fui direto para o banheiro, tenho a tristeza de começar os dias com o rosto todo inchado e os olhos cheios de remela, que nem coçando resolve,  só lavando o rosto para lidar com essas falhas. Tamanha foi a minha surpresa ao ver que o banheiro também estava empesteado de Post-it. “Aqui também? Vou ter que ter uma conversa séria com essa garota.”. 

“comprar pasta de dente”
“comprar toalhas novas”
“comprar sabonetes líquidos e para banho”
“comprar fio dental”
“comprar perfume”

Todos colados no espelho, tive que tirá-los para conseguir me ver perfeitamente, mas no estado que estou os Post-it fizeram um favor de tampar meu rosto. Abri a torneira e percebi que realmente, a pasta de dente que fica em cima da pia está praticamente vazia, mesmo eu tendo comprado recentemente. “Sair enchendo a casa de papel por aí já é uma merda, mas agora, gastar pasta à toa para me pregar uma peça já extrapola os limites”.

Com o rosto meio molhado, as gotas desciam sobre as marcas de expressão de alguém seriamente irritado. Já mais disposto, corri em direção ao quarto de Margaret. Sabia que provavelmente estava dormindo, não era normal que acordasse cedo mas com todo esse incômodo que ela tá me causando fui lá tirar satisfação.

“não entre cedo”
“não abra”
“abrir só vai estragar o seu dia”
“aproveite seu dia”
*Knok Knok*
-Margaret, acorda!
-Acorda agora, que a gente precisa conversar!
-Margaret?!
*Knok Knok*
-Margaret, que merda são essas pela casa?!
-Margaret, ou você abre ou eu vou entrar!

Abri a porta no estouro para acordara-la de uma vez por todas. Ascendi a luz. Mas nem sinal de Margaret. A cama estava organizada, os travesseiros sem marcas de rosto, as cobertas dobradas em cima da cama como no quarto de hotel, todas as portas dos armários estavam abertas sem roupa alguma, não havia nada, era como se ninguém vivesse naquele quarto. Só havia uma coisa em comum com os outros cômodos, os Post-its espalhados por todas as paredes do quarto. Comecei olhando primeiro a parede com o interruptor.

“ela se foi”
“Margaret se foi”
“Eu a perdi”

“Mas isto foi ontem”. Analisei bem os Post-it e percebi que nenhum deles fazia sentido. “Que brincadeira de mal gosto”, “agora ela realmente passou de todos os limites possíveis, quando ela chegar da escola teremos um papo muito sério”.  Estava enfurecido porque Margaret sabe que eu não gosto que brinquem com morte e mesmo assim fez esta brincadeira sem graça.

“um acidente de carro, eu estava dirigindo”
“10 de maio de 2008 dia do acidente”

A minha raiva começou a passar e o medo começou a tomar conta de mim, percebi que eram anotações muito específicas, Margaret gostava de falar que eu não seria nada sem ela e que eu sentiria muita falta caso ela se fosse mas não tinha idade para pensar nesses tipos de coisa. Passei a ler os Post-its da parede direita à porta, cada um se completava e cada vez mais fui ficando perplexo.

“fomos levados para o hospital”
“os médicos fizeram de tudo’”

De repente, senti um peso enorme nas costas, como se toda a culpa do mundo estivesse caindo sobre mim. Cai de joelhos e entre lágrimas cortantes escorrendo pela minha face, comecei a lembrar.  Estávamos indo para o Mc Donald ‘s comemorar seu aniversário de 10 anos, estava toda empolgada porque fazia tempo que não saíamos juntos. Eu passava a maior parte do tempo dentro de meu quarto escrevendo os livros que iriam ajudar a pagar nossas contas, mas como tradição de aniversário, peguei ela da escola e fomos direto para o lugar que ela escolhesse. Ela estava radiante, como se fosse o dia mais importante da vida dela, e talvez fosse. Peguei sua mochila e coloquei no porta malas. Assim que entramos no carro, já começou a pular de alegria.

-Para onde vamos papai??
-Para onde você quiser minha querida.
-Vamos para o Mc Donald’s!!!
-Certeza?
-Simmmm!
-Então coloque os cintos que é para lá que vamos!
-Obaaaa. 

Nunca pensei que aquela seria a última vez que eu veria seu sorriso. Através do retrovisor vi seu rostinho alegre e meio, com um sorriso de ponta a ponta e com as bochechinhas vermelhas de emoção.

“não foi minha culpa”
“a culpa é desse merda”

-Vai pedir que lanche?
-Mc Lanche Feliz
-Para variar né

Nunca pensei que estas seriam as últimas palavras que eu ouviria de sua boca. Momentos depois foi quando tudo aconteceu.

“ o cara que cruzou na faixa errada”
“o carro capotou”

Acordei no hospital, sem saber o que estava acontecendo. Demorou alguns minutos até me lembrar e percebi que eu também não estava bem. Nada grave. Levantei da maca e senti uma dor de cabeça, mas eu precisava encontrá-la.

-Senhor, por favor não se levante
-Cadê minha filha?
-Ela está no quarto ao lado, está desacordada mas os médicos estão fazendo de tudo pelo caso dela.
-E qual é o caso dela… qual é o… cas-o… dela?
-Senhor, por favor se deite 

Minha visão ficou turva. Quando acordei já não me lembrava de nada. Tiveram que me explicar tudo o que aconteceu nas últimas horas e percebi que na verdade havia se passado um dia.

“Margaret não sobreviveu, teve um traumatismo craniano e morreu”

-Fizemos de tudo mas a sua filha não resistiu.

Quando o carro capotou, ela bateu a cabeça. Teve um coágulo sanguíneo no cérebro e isto foi o suficiente para tira-lá de mim.

-O seu caso também é grave, senhor.

“volte para casa e anote tudo que você não quer esquecer”

-O senhor bateu a cabeça também e decorrente disto, desenvolveu algum tipo de doença degenerativa em seu cérebro que até onde pudemos analisar, você esquece tudo que ocorreram em vinte e quatro horas.

Não pude mais vê-lá, tive que fazer o que os médicos mandaram. Cheguei em casa  e em meio as lágrimas me pus a anotar tudo, e dela tudo que me restou foram os Post-its do dia do acidente, lembranças que já não posso mais ter.

Entre lembranças e choros me levantei. Sabia que tudo estava muito claro na minha cabeça, mas não por muito tempo. Queria poder pensar nela por mais tempo… ver aquele rostinho mais uma vez… mas cada minuto que eu passo sem anotar são dois minutos a menos de vida. Dei uma última olhada no quarto antes de esquecê-lo novamente, e junto dele as memórias daquele dia de merda. Infelizmente não posso mais me dar o luxo de ficar de luto, se ao menos eu não me esquecesse, poderia aproveitar mais. Saí do quarto dela e fui direto para o meu. Sentei em minha mesa, peguei um Post-It, um lápis e fiz a única coisa que me mantém vivo.

“Hoje foi dia 8 de maio de 2010, lembrar.”