Não tive pais; ninguém me quis. Fui, em quase todos os casos, atirado aos lobos. Quem me ninou
quando criança, sendo tão criança quanto eu, já não vê mais a mesma fagulha de antes nos meus
olhos. Era o mais próximo de família que eu havia conhecido e me apegado, porém no apagar das
luzes e fechar das cortinas, estou sozinho pela minha própria falta de tato. Acostumei-me a me
isolar no meio de multidões, sorridentemente solitário, carinhosamente sem lugar para pertencer.
Talvez, espiritualmente, eu seja refugiado. Não tenho minha própria nação; meu coração não mais
reconhece casa. Quando ela me abraça, maternalmente, me contraio imperceptivelmente antes de
retribuir com meu melhor sorriso. Não sou verdadeiro, logo eu, que antes não sabia mentir nem
que me impusessem pena de morte, que falava o que pensava sem o mínimo pudor, que tive de
aprender a fazer silêncio. Sou bom aluno: atualmente, mal falo. Vivo, se não há ninguém por
perto, calado, de cara fechada, musculatura rígida — e se há alguém, aí desabrocho.
Mesmo assim, mesmo com o buraco no canto esquerdo do peito clamando por ti (o último que
me repatriou, abriu as portas de sua casa e me fez ter lugar para chamar de meu apesar do
nomadismo), deixo que o celular toque até desligar. Para você não quero mentir, mas também
não quero te dizer a verdade. Não merece ouvir o que nem eu entendo — ficaremos então no
estado de deterioração mais cruel que eu encontrar, e persistirei filho de ninguém, com
nacionalidade nenhuma, de nome nulo na certidão, sem aniversário memorável, sem nada. Me
contento e assumo a personalidade de pessoa qualquer sem identidade para diariamente ser
enterrado como indigente na vala mais comum possível, sem funeral, sem saudades, sem
carinho.
Por Sophia Vieira.