Meus pés doíam, enquanto eu caminhava pela avenida Quebra Sonhos que, por sinal, estava bem movimentada.
Eu estava cansada, eu não tinha emprego e minha casa, PUF, nem era minha, meus sapatos furados e desgastados, minhas roupas todas doadas e meu marido nunca estava em casa, não podíamos conversar e, quando trocávamos poucas palavras, elas não eram agradáveis, pelo menos não de sua parte; eu estava perdida, e já não tinha mais o colo de mamãe, que morrera anos atrás; a cor faltava aos meus lábios e bochechas; CLARO, sei que não posso me dar ao luxo de pensar apenas em mim, com tantos com a vida pior; a tristeza só vem, se você abrir a porta a ela, eu não vou deixá-la entrar.
Vou até a padaria de seu Paulo, com um sorriso largo no rosto; compro 3 pães quentinhos, um para meu marido e os outros dois será dividido entre meus três filhos; NÃO, eu não tomo café, a faxina me ocupa demais para poder ouvir os roncos de meu estômago, além disso, são eles que estão em fase de crescimento, não eu. E, às vezes, quando eles sentem fome demais, conto-lhes uma história, que lhes ocupa a mente, a história do menino cuja vida era poesia, não cantada, nem contada, mas digerida, sua fome era saciada pelas doces palavras que ele mesmo escrevia.
E, assim que a história chegava ao fim, eles corriam até a gaveta e procuravam por papéis não rabiscados, e passavam a sentir fome, a sentir as palavras e a poesia do menino que nada tinha.
Assim, então, a tarde se vai e rapidamente o azul claro do céu, dá lugar ao preto, e a noite cai. Eles sentam-se ansiosos à mesa, esperando o jantar, ou melhor, o que restou da noite passada, arroz e ovos mexidos ou, como eles costumam dizer, “macarrão, carne e salada, mamãe”, é só imaginar e sentir e pronto, estará lá, “HUMMM, que carne gostosa”, diz João referindo-se aos ovos, saboreando-os como se realmente fossem carne.
Chega a hora de dormir, eles pedem uma história, pedem um conto que lhes tire dessa realidade, que lhes faça dormir, sem o peso da verdade. Desta vez, eu lhes conto a história da menina que sempre acordava em um mundo diferente, onde tinha uma cama quentinha e fartura todo dia, com seu cabelo trançado e seu vestido rodado e, quando de dia o sol nascia e para ela sorria, suas perninhas logo colocavam-na a se mexer, ela cantava e dançava, pelos campos cor de prata, à procura de um amigo que desse fim ao seu suplício, que lhe trouxesse muito encanto, muito riso e muito canto, mas de nada adiantou e a noite chegou, a lua entristecida, jogava-lhe fortes e frias rajadas de vento, desmanchando suas belas tranças e amassando seu vestido, a pequena garotinha então se via perdida, mas não se abalou e logo imaginou um lindo cobertor, que, como mágica, apareceu e, com suas plumas quentinhas e brancas, cobriu a pequena garotinha, que logo se pôs a dormir, já à espera de acordar em um mundo diferente, com estradas feitas de doces e pessoas contentes, onde a solidão não assolava e a vida era feita de risadas.
E a história então chega ao fim, “nosso cobertor é muito mais sonhador mamãe”, diz Clari, antes de cair completamente no sono.
Deixo a água gelada cair sobre meu corpo nu, meu corpo pálido, meu corpo magro, com os ossos visíveis e a desnutrição evidente, consumindo agora minha carne, deixo-a lavar-me, deixo a água limpar minha alma e expelir as más energias, me renovando, me limpando por completo, tirando minhas enxaquecas , escondendo minhas dores pelo corpo e meus arroxeados nos quadris e pernas. Então, deito-me sobre o tapete com os pensamentos distantes, tentando ao máximo concentrar-me em meu sono, até minha respiração ficar regular e mais leve, minha mente vazia e, com ele, o sono, eu adormeço.
Desperto com o sol da manhã banhando meu rosto, levanto-me e acordo as crianças, arrumo-as, entre calças desgastadas e meias furadas, o dia deles ainda permanece cheio de graça; suas mochilas e cadernos já estão em fase terminal, as folhas todas usadas, as mochilas remendadas, sem espaço para mais nada; não posso lhes comprar nada novo, se nem lanche tenho para lhes dar, a vida é assim, para quem não tem dinheiro para comprar.
Antes da escola, eles pedem-me uma história, a história dos irmãos das sacolas Verde Limão; eles não tinham dinheiro, nem para comer quase direito, por isso, tudo era questão de imaginação, de pensar e colocar as mãos para trabalhar, suas mochilas eram de sacolas Verde Limão, do Mercadão, suas canetas encontradas no lixão e seus estojos feitos de papelão. Viviam na simplicidade, mas viviam de verdade; eles gostavam muito de suas personalizações e criações, andavam sempre de cabeça erguida, orgulhosos do resultado final, de seus lindos materiais. E assim eles estavam prontos, eles já poderiam ir para a escola, sem se importar com os olhares de pena e olhares de deboche quando passavam, pois eles amavam aprender e amavam escrever, eles amavam a vida e, acima de tudo, amavam como viviam-na, e não, NÃO importava o que dissessem, a vida os amava sendo pobres, sendo ricos, eles eram muito unidos.
Assim que eles se vão, começo a dar vida à minha rotina, começo a trabalhar, a lavar e a passar, mas sou impedida novamente, muito bruscamente, quando minhas enxaquecas voltam com muito mais força para me assombrar; desta vez, perco os movimentos nas pernas e caio no chão, sem conseguir me segurar em nada, caio de costas para as pilhas de latinhas de cerveja que meu marido propositalmente deixou ali. Não entendo, mas e dinheiro da comida e as contas? Latinhas? É tudo que encontro? Meus pés não conseguem ir muito mais longe, por culpa da dor latejante que domina meu corpo, mas o que é isto? Sinto um gosto amargo, meio metálico na boca, SANGUE! Não consigo gritar, só consigo ouvir meus filhos dizendo “Mamãe, chegou a sua vez de ouvir uma história’”. Ela era forte – dizia Clari, “E destemida” – Agora conseguia ouvir a voz de João, “Ela era a princesa da vida” – As doces palavras de Anie agora soavam, “…ela não cantava poesias, não viajava através de mundos mágicos, nem era artesã da vida, ela era mãe, ela quem nos deu a vida; a princesa apanhava, a princesa se cansava, a princesa sentia dores e a princesa sentia medo, ela não era qualquer princesa, ela era a única princesa que conhecíamos, a princesa que corria em dia de chuva, quando o céu estava bravo e triste, soltando raios mortais, só para nos trazer um guarda-chuva. A princesa da vida, que se doía em silêncio, mas que, mesmo assim, amava seus filhos além do amor, que nos trazia magia, mesmo a dela estando enfraquecida, ela não tinha poderes, não, ela não tinha, ela tinha coração, algo que faltava para muitas pessoas que conosco ou perto viviam. Seus cabelos pretos, seus olhos cor de mel, sua voz macia que nos encantava todos os dias, você é perfeita, mamãe, da cabeça aos pés. Pode dançar, pode cantar, pode dormir até mais tarde, é isso que as princesas fazem; você já fez demais por nós mamãe, somos gratos e te amamos, mas agora é sua hora de descansar, você vai conhecer um novo mundo, onde a tristeza não te assombrará, seu sorriso nascerá com mais facilidade, pois você estará feliz, mamãe; estaremos lá, mesmo que você não possa nos ver. Mamãe você é luz, mamãe você é amor, mamãe você é guerreira, agora descanse Princesa da Vida, descanse Mamãe”.
De repente não consigo ouvir mais nada e, aos poucos, a imagem de meus filhos desaparecera por completo, não os vejo mais ali, eles sumiram, mas eu ainda estou no chão, ainda sinto as dores, e agora minha visão está ficando turva e embaçada, sinto minha respiração parar, assim como meu coração, mas, por que ainda continuo consciente? Sinto agora meu corpo mais leve, como pluma, não sinto dores, me sinto…Me sinto bem?
Laura Cristina Zorzo – 1° Ano A de Química – IFC – Campus Brusque.