Meu sangue saltita nas veias; sou humana e acordo sobressaltada com isso. Fato macabro! Quem disse que quereria eu ser?
O remédio contra isso é casual e intravenoso, quase insulina para diabético. Sempre dou um pulo com a agulhada forte, com o choque gelado da apatia me descendo o corpo. Se encher demais, estouram-se as veias; posso até sentir minha veia duelando com o que tenta entrar. Meus glóbulos arreganham os dentes para o corpo estranho que me ocupa de dentro, sem saberem que o corpo que eles ocupam é até pior que.
Acaba a seringa, que cai morta, sem vida. Pobre poeta; só o caminho, mas nunca o começo. Seringa de final, útil e descartável. Seu rancor por ser desprezada se dá por poluir o mundo. Que vidinha miserável a pobre leva, comboio de apatia até às vias do humano que não vê porquê em sentir. Sem trem, apatia não anda, não tem pé. É um ser preguiçoso que prefere ser carregado, por isso se instala fundo na alma de alguém como carrasco. O trem é a seringa, mas essa é da laia das injustiçadas justiceiras. Sinto de longe que a agulha no tecido é o menor dos meus problemas.
Por falar em agulha, me vi sem uma por esses dias. Acabei eu e eu com uma seringa sem caminho — pobre seringa… — e um remédio sem transporte. De que adianta um trem sem trilho, minha senhora? Trem sem trilho é inútil. Fica ali, atrapalhando quem há de atrapalhar e zombando da cara do que precisa dele. O trilho sumiu, foi embora, pobre coitado desistente. Não aguentou o calor e nem a dificuldade de ter que entrar em terreno tão ruim. Sinto todo dia na agulhada uma reclamação sobre minha pele dura, carapaça para não morrer nesse mundo de gente afiada. Ninguém entra em mim senão a seringa, mas entra reclamando porque quem força sou eu.
Remédio intravenoso; hoje é completo. Mais uma vacina de apatia marcada no meu calendário. Sou adulta com caderneta de criança que toma medicação de hora em hora. Nunca saio da observação desse imenso hospital de um único funcionário — ai de mim!, sou ansiosa e aqui não tem nada para me ocupar. Só o tique-tique do carimbo, o tique-taque do relógio.
Minhas folhas estão acabando porque dessa vacina são muitas. Só assim para sobreviver nesse mundo atual de gente macabra. Minha alma tão doce morre e vira apática. Coração bate, bate até morrer em uma ostra. Mas Deus queira que meu corpo fique e Ele há de querer que dessa carne podre saia algo divino; se a mulher adúltera serviu de lição, que eu também sirva. Adúltera, pecadora! Simples humana próxima. De mim sairão divindades. Deus há de querer. E agora me vou que só vontade divina não faz uma bíblia e meu trabalho é longo com tempo curto. Vou blindada de apatia, mas me vou. Até amanhã, sou humana: me despeço com amor para amanhã sair nos tapas.
Até mais, Deus abençoe.
Por Sophia Vieira.