III

*Smack*
Boa noite filho.
-Mãe, fica mais um pouco
-Só mais um pouquinho.
-Lê Reinações de Narizinho?
-Leio sim meu querido, agora tenta dormir.
-Tá bom

Às vezes eu esqueço que estou crescendo e que já já não vai mais fazer sentido a mamãe vir me dar boa noite já que amanhã é meu aniversário de 11 anos. Claro que todo dia eu fico um pouquinho mais velho mas amanhã eu vou estar oficialmente mais velho, o que significa que não vai mais fazer sentido a mamãe vir me dar boa noite já que isso é coisa de criança, por isso não posso perder a oportunidade de manter ela aqui comigo o máximo possível hoje a noite.

*Smack*
-Boa noite filho.
-Mãe, fica mais um pouco
-Não senhor mocinho, já fiquei tempo demais e a mamãe tem que dormir porque amanhã as visitas vão chegar cedo para o seu aniversário.
-Visitas?

Não fazia ideia de que viria alguém além dos meus pais comemorar meu aniversário porque tive a sorte de nascer bem no final de dezembro, data que não tem ninguém na minha cidade porque tá todo mundo indo para a praia.

-Sim, sua tia, Carlos, o tio Ricardo e a filha dele, Rosa.
-A Rosa vem?!
-Sim, como o Ricardo ia vir para o seu aniversário, já que queria ver o sobrinho querido dele, aproveitei para convidar a Rosa. Ta interessado porque? Hein? Hmm? Me fala, tem uma quedinha por ela né filhão?
-Não é isso não, mãe.

A última vez que eu e a Rosa nos vimos foi quando eu, papai e mamãe fomos para Balneário Piçarras  visitar a casa dela.  Tínhamos acabado de chegar da Havan e Rosa estava muito feliz por ter comprado várias roupas novas e queria provar todas. Como ela acha que não tem um bom senso de moda, me chamou para ajudar a ver qual roupa combinava com qual pra depois esfregar na cara das amigas dela de que era bonita sim, coisa que ela achava que se resolveria caso ela tivesse roupas combinando, acho que isso é coisa de adolescente.

No quarto, ela jogou todas as roupas na cama e ficou olhando por onde começar:
-Que tal essa mini saia, com esse top preto aqui?
-Acho que combina mais um shorts jeans com top preto do que mini saia com top preto
-Tens razão… acho que sutiã não vai combinar com esse look. Vou provar.
-Agora?
-Sim, algum problema?
-Não, não.
-Não fica me olhando não hein.

Me virei para olhar a janela e ela começou a tirar a roupa, justamente pela parte de cima.

-E aí, o que você acha?

Me virei e sinceramente levei um susto, não estava preparado para aquele momento.

-E então, o que você acha?
-Do que exatamente?
-Deles!
-Deles quem?
-Dos meus peitos horas, quem mais seriam?
-Mas você pediu pra eu não olhar
-Agora eu quero que olhe, o que você acha deles?
-Legais?
-Legais?
-Sim?
-Você acha que meus peitos são legais e ainda diz isso com dúvida?
-Quer dizer, eles são bem… eh… bem legais mesmo, sim são legais.
-Não é para você achar meus peitos legais é para você achar eles lindos, incríveis, maravilhosos, super legais, não, melhor do que isso, ultra mega legais.
-Mas porque?
-Porque minhas amigas ficam rindo dos meus peitos falando que são pequenos e que parecem conezinhos só porque os delas já estão todos desenvolvidos e parecem umas maçãzonas enquanto os meus ainda são desse jeito… então, o que você acha deles??
-Eh…

Sei que esse era um momento bem delicado, dependendo da minha resposta ela poderia ficar bem chateada, então eu dei o meu melhor:

-São bem legais.
-Bem legais?
-Sim?
– Acabei de falar o que você deveria achar deles e você ainda diz bem legais? Se nem um garoto de 10 anos me acha bonita imagina um garoto de 16 anos! Não vou arrumar um namorado nunca, vou ser solteira para sempre e minhas amigas nunca vão parar de me zoar por isso e por causa dos meus peitos!

E começou a chorar como se aquilo realmente fosse a coisa mais importante da vida dela.

-Ei, ei, você é linda sim, não chora.

Parecia que ela não tinha me ouvido porque só piorou o choro depois do meu comentário. Decidi então sair de fininho do quarto para não piorar ainda mais a situação.

-Não, não é isso não, mãe.
-Então o que é filho? Hein? Me conta vai.
-É que ela é meio estra… mãe, esquece, vai dormir porque amanhã você tem que acordar cedo para receber as visitas
-Não vai me contar mesmo?
-Vai dormir mãe, beijos, boa noite
-Tá bom, tá bom, você venceu. Então, boa noite meu amor, durma com os anjos

Quando ela abriu a porta e estava quase saindo, eu perguntei:

-Mãe?
-O que foi filho?
-Promete que você ainda vai vir me dar boa noite mesmo que a partir de amanhã eu já vou estar mais velho?
-Filho, você vai fazer 11 anos, não está nem um pouco velho e mesmo que estivesse eu iria vir te dar beijinhos de boa noite mesmo se você tivesse 80 anos.

Aquela frase me deixou bem feliz, mesmo eu sabendo que é impossível porque quando eu tiver 80 anos ela já vai estar morta, mas tudo bem, eu entendi o que ela quis dizer: não importa a idade que eu tenha ela ainda pode vir me dar boa noite, o que realmente me deixou bem feliz porque eu estava com medo de ficar grande e não poder ter mais esse carinho da minha mãe. Eu realmente adoro quando ela vem me dar boa noite porque sempre me sinto seguro depois disso. Sinto como se nada pudesse me acontecer e que ela sempre estaria ali independente da distância. E além de tudo isso o que eu mais sinto é todo o amor que ela tem por mim, eu realmente me sinto amado quando ela faz isso e eu não quero perder essa sensação nunca.

Ela saiu e fechou a porta atrás dela. Agora era só eu e a escuridão não tão escura com a luz das estrelas, porque durmo com a janela aberta já que meu quarto é no segundo andar da casa e eu não gosto de dormir totalmente no escuro nem com a porta aberta, mesmo que seja para deixar a luz do banheiro acesa, para que nenhum monstro venha me pegar de madrugada quando eu estiver desprevenido dormindo.

Virei para o lado e fiquei observando as estrelas porque minha cama é colada na janela. Na rua, escuridão. No céu, uma claridade como se estivesse tendo uma festa e tivessem usado todos os piscas-piscas da casa para deixar ela o mais chamativa possível, como se os donos da casa realmente quisessem dizer “Ei! Olhe para nós, estamos querendo chamar a sua atenção!”, e eles realmente conseguiram porque eu não consigo tirar os olhos das estrelas, é como se elas me chamassem, é como se elas dissessem “Ei! Não te queremos só vendo o quanto somos brilhantes, te queremos aqui do nosso lado, venha aproveitar a festa com a gente!”, e ao mesmo tempo eu fico pensando como elas estão tão distantes de mim, como são impossíveis de alcançar e que nunca vou ter elas aqui comigo nunca. Talvez eu ainda entenda tudo errado.
As estrelas não tinham tanta importância para mim antes, realmente não tinham, é como se de uma hora para outra elas se tornassem uma das coisas mais importantes de todas e talvez tenha sido de uma hora para outra mesmo porque foi dessa mesma forma que meu avô foi embora, de uma hora para outra. Tá bom, talvez eu esteja exagerando, ele já tava há um ano de cama e os médicos disseram que ele teria no máximo um ano mesmo, mas no meu coração sempre vai parecer que eu não fiquei tempo suficiente com ele para me despedir.

-Vô, o senhor está melhor? Os médicos disseram que as suas tosses voltaram
-Elas nunca se foram filho, elas me acompanham desde a minha meninice, mas posso te dizer que já estive pior com certeza, não se preocupe tanto assim criança, não vou a lugar nenhum.
-Não é o que os médicos disseram
-Eles não entendem, são imaturos demais para isso.
-Não entendem o que?
-Que a distância não existe!
-Como assim, vô?
-Deita aqui garoto.

Com jeitinho fui deitando na cama de hospital do vovô, com todo o cuidado do mundo fui me aconchegando em seu peito porque eu sabia que ele estava bem mal e que qualquer força que ele fizesse poderia deixar ele bem pior.

-Aconchegado?
-Sim
-Então olha lá para fora. – ele disse apontando para a janela. Está vendo as estrelas?
-Tô sim
-Então me diz, do que as estrelas são formadas?
-Plasma
-Olha você sabe mesmo, parabéns. Do que o plasma é formado? 
-Da transformação de hidrogênio em hélio
-Acertou novamente, alguém realmente presta atenção na aula de ciência.
-Minha matéria favorita, vô
-Que bom, ela é muito importante. Agora me diz, o que é um hidrogênio?
-Um átomo.
-Bingo!!! – disse balançando as mãos para o alto em posição de vitória e depois começando a tossir de novo.
-Vô, cuidado!!! Você não pode fazer força
-Passou, passou, às vezes eu esqueço que meu corpo já não é mais o mesmo. Enfim, onde paramos?
-Que um hidrogênio é um átomo
-Ah sim, você acertou de novo. No final meu filho, nós também somos átomos, tudo são átomos!
-E?
-Não percebe que apesar de eu e você estarmos aqui nós estamos conectados às estrelas através dos átomos?!
-Vô, mas porque o senhor está falando isso?
-Porque eu quero que você saiba que eu sempre vou estar ao seu lado mesmo quando eu estiver nas estrelas, porque no final, estamos todos unidos por um laço que é a vida.
-Vô, eu não quero que o senhor vá, eu quero que você fique aqui comigo, aqui mesmo, não quero que você esteja nas estrelas e aqui ao mesmo tempo, eu quero que você esteja só aqui
-Mas o vovô precisa ir.
-Por que você precisa ir? Por que você não pode simplesmente ficar aqui?
-Porque meus átomos estão se transformando e no final tudo que sobrará nesse corpo são os átomos da carne porque meus átomos estão se transformando e não podem mais ficar neste corpo.
-Por que não?
-Porque os átomos da carne estão ficando muito fracos para os meus átomos, agora, meu próximo corpo serão as estrelas.
-Por que?
-Porque só elas podem acolher meus átomos agora. Todos eles. Os de alegria, os de tristeza, os de emoção! Os de raiva, os de medo, os de sonhos vividos e os de sonhos que sempre foram só sonhos. E os principais, os átomos de amor.
-Eu também posso!

E com os olhos de quem sabia o que estava por vir me olhou e disse:

-Tá vendo aquela estrela ali? – E apontou para o céu novamente.
-Sim
-E aquela ali?
-Também
-E aquela?
-Tô vendo vovô
-Eu estarei em cada uma delas te observando, te incentivando e encorajando, te guardando, estarei em cada uma delas te observando crescer, realizar seus sonhos, ser um garoto incrível tendo a vida que sempre quis. E estarei acima de tudo torcendo por você e te ajudando a lidar consigo mesmo nos momentos mais difíceis da sua vida, mas também estarei nos melhores.
-Vovô
-Que?
-Promete que vai estar sempre lá fazendo tudo isso que você acabou de falar para mim?
-Prometo, e não só estarei lá como sempre estarei aqui com você.
-Tá bom então vô, pode ir
-Posso mesmo?
-Pode
-Muito obrigado meu neto querido, irei mais feliz do que era previsto – e deu um simples sorriso que significou o mundo para mim. Agora deixa o vovô ver a mamãe um pouquinho porque ainda precisa conversar com ela algumas coisas.

Me levantei com o mesmo cuidado que me deitei e beijando a mão do vovô, deixei a mamãe entrar e fui esperar no corredor com o papai. Acabei pegando no sono e acordei com os soluços da mamãe no carro e o papai tentando acalmar ela.

-Mãe
-O que filho? – Ela me respondeu tentando esconder as lágrimas
-Por que você tá chorando?
-Por nada filho, não se preocupe, mamãe já parou.
-…
-…
-Mãe?
-Fala filho?
-Por que a gente não tá com o vovô?

Sentada ao lado do banco do motorista, mamãe vira para mim

-…

E tentando engolir o choro

-…

ela diz:

-Porque o vô foi para um lugar que nós não podemos ir também.
-Para as estrelas?
-Sim meu filho, para as estrelas. 

É verdade, não foi uma despedida ruim, na verdade foi muito boa e me lembrar dela aqueceu meu coração. Talvez o vovô tenha razão, talvez ele esteja nas estrelas agora. Olhando para elas, agora sinto uma luz diferente, a luz que ele deixava por onde passava. A luz que ele era. Talvez o vovô tenha razão, talvez ele esteja aqui comigo agora, talvez ele esteja aqui sempre, não importa o que aconteça. Não tem distância que me faça esquecer o amor que eu sinto por ele, até porque, distância não existe.

Olhar tanto para as estrelas e pensar no vovô me deixou com sono. Me virei para o outro lado, dei um beijo na testa da Mrs Scarllet, “Boa noite Mrs Scarllet”, dei um beijo na testa da Marina, “Boa noite Marina”, e fui dormir porque já estava tarde e eu tinha que acordar cedo para não deixar a mamãe sozinha com as visitas.

FIM