Gon é devoto de mim em mesma medida que sou dele. Pudera, garoto nascido e criado num ambiente meio católico, dos que usam camiseta de sua santa favorita por aí, não saber devotar-se? Seria piada de mal gosto, aliás, seria impossível. É o talento de Gon de trazer os céus à terra com a boca sem citar versículos, apenas por abri-la e mostrar seus dentes para o mundo como se quisesse abocanhar um pedaço de salvação, garantir seu canto no paraíso ou trazê-lo aos pecadores; e quando fala meu nome, tão sutil ou tão forte, com tanta ênfase ou devagar, arrastando as sílabas em privado ou em público como se quisesse me enfiar em sua própria definição de céu, é como uma oração, pequena, ínfima, potente. A vida, de certa maneira, deixa seu aspecto de mistério e desnuda-se em minha frente — e não é sexual, não é atirada: ela é tímida, tenta por tudo se esconder dentro das curvas do sorriso dele outra vez. É absurdo: já estou de joelhos, pronto para sacrificar o que quer que seja pedido de mim.
De alguma maneira, falado por ele, meu nome vira uma casa. Me reviro em mim mesmo ao ouvir, tão tarde da noite, seu sussurro por ter acordado e saber que tenho sono leve, clamando o que tenho de atenção; seus dedos, cuidadosamente mornos, enrolam uma mecha de meu cabelo e então Gon sorri ao notar que estou o encarando, naquela oração que apenas ele faz, sem dizer nada, sem versículo algum. São nos vãos das madrugadas que realmente sinto o poder que existe nele de marcar-me dele com unhas e dentes e, mesmo assim, não me tocar mais do que o mínimo, na ponta dos dedos, no cruzamento dos olhares; são nos pequenos espaços de noite que Gon resolve me fazer fechar os olhos e orar pelo que quer que eu esteja lutando por. É suave: ele me chama, abre sua boca cheia de dentes, me concede o dom de saber a verdade por alguns instantes e retorna ao seu posto original de detentor da salvação. Devota-se a mim por me dar a oportunidade de conhecer o que é bom; devoto-me a ti por dar tudo de mim em aprender.
Muitas foram as vezes nas quais acordei, assustado, e logo me acalmei com a intervenção da palavra de Gon. Posso dizer que estou próximo de conhecer todos os cantos da verdade que está na boca dele, doce, pura, concreta: está nos cantos mais improváveis, por vezes encoberta numa cara feia que se desmancha à minha menção. Em alguns momentos, no limbo onde estive sozinho, sua voz é o que me leva em direção ao céu e traz de volta; noutros, entretanto, fui a âncora terrena da beatificação de Gon Freecss, o empecilho de que ele flutuante até os céus e por lá ficasse: de que valeria um anjo que ainda reza fervorosamente pela alma de um mortal errante que não vai mudar? Me pergunto enquanto também aprendo a orar, mãos juntas (em seu pescoço), olhos fechados (para evitar perder-me), respiração calma (de encontro com a dele), junto (em sincronia). Gon me torna um fiel das maneiras mais heterodoxas, convertendo-me com argumentos muito bons — afinal, quem recusaria a oração cálida de seu sorriso, a salvação amável de seu olhar, a consciência profunda advinda do pecado de seu beijo? Eu, jamais. Nosso processo é como um sonho sem fim e sem início, interminável enquanto ele estiver dedicado a me levar ao céu ao seu lado com sua gentil voz que se projeta no silêncio da madrugada como um sutil clamor, equiparada com o suspiro de um anjo, e com suas verdades disfarçadas de beijos.
Dessa história me saio um devoto fervoroso e declaro: talvez o que me faltasse para boas orações fosse uma boa causa pela qual rezar, uma boa verdade a qual agarrar e um bom anjo ao qual acender velas. Daqui, aliás, me despeço com um rosário e uma bíblia, onde estão enumeradas em versículos todas as um milhão de verdades que Gon ainda esconde nos desvios de sua existência e que eu me dedicarei a peregrinar em prol de descobri-las, sendo bom romeiro e vivendo de nada além da memória de suas rezas.
Por Sophia Vieira