As paredes refletem o frio da noite,
Da comida que repousa na porta de minha cela.

Em minhas costas posso sentir o calafrio se alastrando como uma onda,
A carta treme junto de meus dedos, acompanhando meus lábios trêmulos,
Trêmulos como a água de um lago após a primeira gota de chuva,
A chuva de outono que regava meu telhado com uma constância agradável.

Como era bom ver através do vidro os pássaros dançarem,
Agora vejo a poeira estática do concreto liso e cinza.

Estática.
Pertencente somente a mim e a carta amarela que guardo.

A caligrafia é impecável, limpa.
As palavras são legíveis quando fora de minha mão instável.
Eu as leio quando o sol atravessa o recorte quadriculado em minha parede,
Mas aqui, sob a luz da lua, leio somente a solidão impermeável em que me acho.

A dias um rato me fez companhia melhor que qualquer outro presidiário já fez, Andou excentricamente sobre minha comida e até mesmo tal animal, sentiu desgosto. Percorreu um caminho incômodo em minhas pernas, do qual eu não intervi nem importei. Estava sentado havia dias, esperando a morte pacientemente. Sem esperança alguma.

Ao lugar de uma morte libertadora, recebi uma carta.
Sem assinaturas. Sem data. Somente palavras riscadas a pena:
Me encontre.
Impossível.

A remetente de minha carta, é a razão para meu castigo.
Não. O que fiz a ela, foi o que me condenou.
Poderia culpar seu amor escondido, ela mesma ou até o revólver.
Mas não irei mais mentir para mim.

A matei. Ao mesmo tempo que matei uma parte de mim.
A bala atravessou seu coração e minha alma.
Minha consciência oscilou entre a sanidade culposa, e a loucura leve,
A epifania de esquecer o ego e perder as cordas.

Mas sou assombrado,
Vejo-a na porta de minha cela, me encarando.
Seus olhos azuis são como o mar infinito que cerca meu peito,
Eles me enchem de medo, de arrependimento e nunca desaparecem.
Minha refeição me espera, gélida. Morta.
O rato já se foi, levando consigo um corte de cenoura que se destacava no amontoado de sobras.
Meus talheres tremem com o frio. Imundos e amarelos.

Minha última refeição foi anterior a carta paradoxal.
A fome desabrochou por meu organismo dolorosamente,
Deixando-me forças somente para tremer com a brisa da noite.
Posso sentir minha respiração leve, e o ritmo em meu peito, lento.

Os dias riscados por pedra na parede contam 1 ano, 5 meses e 27 dias.
Mas fazem seis dias que parei a conta, e cá estou.
A beira do fim, indo encontrá-la. Talvez quem sabe ela me perdoe, me ame ainda de todo coração.

Ou quem sabe eu queime. Eternamente.

Relatório sobre Prisioneiro 8764 (Arnold Schwenzer) Data: 27 de julho de 1894

Guarda de cela – Bloco D – Presídio de segurança máxima Krymov.
Autenticação: Sergi Tozquier Schultz

O prisioneiro 8764 foi achado morto às 4:06 da manhã de segunda-feira (27/07/1894), mesmo dia do relatório em questão. O médico legista Dr. Schneider declarou em sua autópsia, morte por insuficiência do organismo, decorrente da falta de alimentação e hidratação.
Schwenzer estava vestindo a roupa entregue a todos os presidiários do Bloco D (Checar no necrotério³), e possuía somente uma folha de papel amarela, totalmente em branco com algumas mordidas no canto esquerdo, das quais penso terem sido feitas por algum roedor ou arrancadas por ele mesmo. Sua refeição estava criando fungos e com um odor péssimo por
decomposição, provavelmente intocada a dias e sem ser trocada por falta da solicitação proveniente de 8764.
O psiquiatra interno da prisão (Dr. Peter Van Arnold) foi o último a conversar com Schwenzer, e alega que o paciente estava mostrando casos de alucinações e culpa extrema por conta do delito que o sentenciou a reclusão perpétua em Krymov, o assassinato de sua cônjugue Marieta Hans Schwenzer.
O corpo será enterrado a praia do Presídio ou jogado ao mar com os corpos dos prisioneiros 645 e 9823, dos quais o relatório segue nas costas desse documento.


Assinado por Sergi Tozquier Schultz.